"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Direitos Humanos e socialismo: contradição necessária e insuperável (III Parte)

Direitos Humanos e socialismo: contradição necessária e insuperável (III Parte)

Jung Mo Sung: Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No final do artigo anterior, fiz duas afirmações interligadas que quero retomar aqui: a) a nossa luta por uma nova sociedade não deve ter como objetivo último um novo tipo de sistema econômico-político – por ex, sistema socialista de planejamento centralizado pelo Estado –, pois a dignidade e direitos humanos são anteriores a qualquer sistema social; b) não há possibilidade de realização dos direitos humanos sem sistemas e instituições sociais.

Com a derrocada do bloco socialista na década de 1990 e às críticas à razão moderna, hoje são poucos, entre os que lutam por um "outro mundo possível”, aqueles que defendem o sistema socialista dominante no século XX, que quase absolutizava o Estado dirigido pelo Partido Comunista. Como reação a esse modelo, muitos tem ido à direção oposta e proposto uma nova sociedade que parece não ter instituições. Em nome da defesa dos direitos humanos (e alguns agregando os direitos da natureza), que são anteriores a qualquer sistema social, imaginam uma sociedade (quase) sem nenhum mecanismo institucional que possam reduzir ou reprimir esses direitos. Por ex, uma sociedade sem mercado –que sempre exclui quem não é consumidor–, ou então um Estado sem instituições ambíguas –como democracia que implica em conflitos e disputas pelo poder, portanto em alianças e negociações– ou mecanismos de repressão legal.

Seria ideal que pudéssemos construir uma sociedade em que vícios humanos fossem extintos e prevalecesse harmonia entre indivíduos, grupos sociais e nações. O problema é que a realização concreta dos direitos humanos, como comer e morar dignamente ou liberdade de expressar suas ideias, pressupõe a produção de bens materiais e simbólicos em quantidade suficiente para toda a população. E essa produção exige sistemas de trabalhos (que inclui meios de produção, matéria prima, energia, tecnologia, mão de obra...), que pressupõe instituições e regras, que são sempre imposições sobre a vontade individual.

A dignidade fundamental de todas as pessoas, independente do seu lugar em qualquer e todo tipo de sistema, só pode ser garantida e seus direitos realizados através de mecanismos sociais e institucionais. Ao mesmo tempo, a lógica de toda instituição e de sistemas sociais é a de reduzir pessoas a um elemento de seu próprio funcionamento. Isto é, há uma contradição insuperável entre a afirmação da dignidade humana como anterior a todo sistema e a lógica de funcionamento dos sistemas. Ao mesmo tempo, não podemos realizar essa dignidade e direitos que dele decorrem sem esses mecanismos sociais e institucionais. Esse é o caráter dialético insuperável da vida humana.

Há pessoas que, de forma idealista (no sentido filosófico), anunciam a possibilidade de fim dessa contradição. Mas, quando pedidos para descrever como seria esse novo mundo e novos seres humanos, não podem nada mais que responder apenas com linguagens simbólicas (místicas ou poéticas) que não permitem deduzir nenhum caminho estratégico concreto.

Imaginações simbólicas são fundamentais para vislumbrar novidades na história, mas, se ficarmos somente nesse nível, não logramos pensar e praticas ações políticas e sociais concretas. Só ficamos em "apelos morais e espirituais”.

Há outros que priorizam o polo da instituição e fazem do Estado, Partido ou líder que encarnaria o processo revolucionário, o critério último. Com isso, não admitem nenhuma crítica a eles, mesmo em nome da vida dos mais pobres. Toda e qualquer crítica é vista como um tipo de traição.

Penso que o caminho mais viável (ou único) para retomar o espírito que moveu a luta pelo socialismo nos século XIX e XX é o de assumir a defesa da dignidade e dos direitos humanos de todas as pessoas como critério último e buscar construir mecanismos, instituições e sistemas sociais que possam garantir a concretização desses direitos. Socialismo entendido, não mais como estatização, mas como sistema social que coloca no seu centro os direitos sociais de todos os indivíduos. Por isso, um sistema que se reconhece relativo e subordinando à realização dos direitos humanos, um sistema que está em permanente processo de revisão, crítica e reformulação.

Direitos Humanos e o socialismo do século XXI (II parte)

Direitos Humanos e o socialismo do século XXI (II parte)

Jung Mo Sung: Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
É da própria lógica de funcionamento de sistemas ou instituições sociais tratar o indivíduo humano como uma peça da sua engrenagem e, desta forma, valorizá-lo na medida em que cumpre com as exigências do próprio sistema. Quanto mais totalitário o sistema, mais o ser humano é reduzido à condição de elemento do sistema e nada mais. Em uma sociedade capitalista neoliberal, como afirmei no artigo anterior, "os direitos humanos foram substituídos por ‘direito do consumidor’, porque, no neoliberalismo, quem não é consumidor não é humano, portanto não possui direitos fundamentais”.

É claro que legalmente falando, mesmo um indivíduo totalmente excluído do mercado, um miserável, não deixar de ser considerado humano, mas na vida cotidiana real e nas dinâmicas sociais e econômicas ele não tem seus direitos humanos fundamentais reconhecidos e respeitados. O mercado, na cultura capitalista, passou a ser considerado a fonte da humanidade e, portanto, fonte dos direitos fundamentais.

Essa experiência cotidiana está tão internalizada na nossa cultura que, quando alguém se sente "menos gente”,deprimido ou "impuro”, uma das soluções mais procuradas é ira ao shopping fazer compras. É no contato direto com o que há de mais esplendoroso do mercado, as vitrines dos shoppings com objetos e marcas glamorosos, que o indivíduo se sente recuperando a humanidade perdida. No passado, as pessoas em situação semelhante iam a igrejas ou a lugares sagrados rezar ou realizar algum ritual porque, nessa cultura, a religião, o sistema religioso, era vista como a fonte da humanidade. Por isso, quem era ateu ou de outra religião que não a dominante era visto como um indivíduo carecendo de humanidade plena.

A luta pelos direitos humanos no século XX não foram somente lutas "políticas” contra Estado totalitário ou ditatorial (seja nos países capitalistas ou comunistas), eram e são fundamentalmente a afirmação da dignidade fundamental do ser humano anterior a qualquer instituição ou sistema social (sistema de mercado, Estado, Igreja,...). Portando, os direitos fundamentais de todo ser humano a vida digna e, por isso, a direitos como a moradia, saúde, educação, ao trabalho remunerado, liberdade de expressão, de ir e vir são anteriores e independentes do lugar que a pessoa ocupa no sistema social dominante.

Não é pertença a uma religião ou igreja que dá dignidade ou valor a uma pessoa. Em termos de sistema religioso, a afirmação dos direitos humanos se fundamenta no princípio de que Deus não faz distinção entre pessoas, não importando se é "judeu ou gentio” (sistema político-religioso), homem ou mulher (sistema de parentesco e de gênero), livre ou escravo (sistema de propriedade/economia) e outras distinções e hierarquias sociais que temos. Em uma linguagem teológica cristã, poderíamos dizer que os direitos humanos se fundam na graça de Deus (Deus não impõe nenhuma condição humana, social ou religiosa para amar a todos).

Assim também, não é pertença ao sistema de mercado e a capacidade de consumo que dá fundamento aos direitos humanos na sociedade capitalista; nem ser cidadão legalmente documentado no mundo globalizado que se fecha aos fluxos imigratórios de trabalhadores buscando sobrevivência; ou então ser leal e obediente ao Estado socialista em países governados por partidos comunistas.

A luta por um "outro mundo possível” não pode ser por um tipo de sistema político-econômico alternativo definido como absoluto ou como critério último para as decisões concretas. Pois, se o sistema ou instituição é tomado como critério último, a dignidade do ser humano fica condicionada a pertença e à lógica dessa instituição ou sistema e se nega a anterioridade da dignidade e dos direitos humanos em relação a todo e qualquer sistema social. Não há possibilidade de realização dos direitos humanos sem sistemas e instituições sociais, mas devemos garantir que esses direitos sejam vistos como anteriores a sistemas. Se não, cairemos em totalitarismo, seja do sistema de mercado total, seja do Estado socialista totalitário ou de qualquer outro sistema político-social ainda a inventar.