"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Direitos Humanos e socialismo: Marx e cristianismo. (Parte final)

Direitos Humanos e socialismo: Marx e cristianismo. (Parte final)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.

Comecei esta pequena série de artigos sobre "Direitos Humanos e socialismo” –que termino com este–, citando uma afirmação de Franz Hinkelammert: "Se hoje dizemos que outro mundo é possível, se queremos uma sociedade alternativa, ou o socialismo no século XXI, então, creio que é fundamental partir sempre dos direitos humanos. Os direitos humanos não são simples moralismo. O reconhecimento dos direitos humanos é mais bem a condição de possibilidade de uma sociedade alternativa e uma sociedade sustentável, a base de toda sociedade que podemos considerar que vale a pena sustentar”.

No passado recente, as lutas por superar o capitalismo foram sempre motivados por implantação de um sistema econômico-social-político nomeado de socialismo. Esse sistema servia de critério para discernir tipos de lutas aceitáveis e os não; enquanto que a noção de dignidade humana permanecia meio na sombra. As reflexões desenvolvidas aqui foram no sentido de propor a defesa da dignidade humana de todas as pessoas anterior e superior a qualquer sistema social ou legal. Isso não quer dizer que não se deva pensar em sistemas sociais concretos, pois sem elas a vida humana não é possível, portanto a defesa da dignidade e direitos humanos. Mas nenhum sistema social pode ser absolutizado.

Nessa luta, o sonho de "um novo mundo e novo ser humano”, com forte ênfase nesse "novo”, nos leva muitas vezes a imaginar a construção de um mundo sem contradições inerentes a todos os sistemas sociais e um novo ser humano sem conflitos e contradições internas e nas relações sociais. Quando se confunde essas imaginações utópicas com projetos sociais possíveis, cai-se na ilusão (idealista) de que podemos construir o que transcende a possibilidade humana; ilusão essa que nos conduz a caminhos equivocados e até perversos.

Quando se luta por sociedades impossíveis (como, por ex., um mundo globalizado sem relações mercantis, porque não queremos nenhum tipo de concorrência), não se constrói o que é possível. Quando se sonha com ser humano "perfeito”, não se ama pessoas reais, imperfeitas como são, com seus egoísmos e interesses, mas também com desejo de solidariedade.

Pensar e lutar por outro mundo a partir deste que temos é fundamental. Assim como é fundamental que aceitemos a condição humana como ela é. Marx, na sua maturidade, ao falar do Reino da Liberdade, escreveu: "Assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza para satisfazer suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis.” Não há e não haverá modo de produção possível em que seres humanos não tenham a necessidadede produzir, distribuir e consumir bens materiais e simbólicos para satisfazer suas necessidades para viver. Não haverá um "reino”, por mais livre que seja, em que a liberdade não dependa também da forma como se soluciona os desafios econômicos da produção de bens necessários.

Além disso, por mais que consigamos criar sociedades mais justas e livres, o ser humano continuará sendo um ser com desejos e necessidades que entram em conflito com desejos e necessidades de outras pessoas. Isso é assim porque não temos conhecimento perfeito da realidade, nem a nossa razão consciente domina completamente nossa vida (Freud já mostrou a força dos desejos inconscientes), e, talvez a característica mais esquecida nas nossas discussões, o nosso desejo está sempre marcado pela imitação do desejo do outro. Desejamos ter o que outro tem ou é. (O décimo mandamento de Deus é sobre isso). Desejo vem ligado à rivalidade. Daí a importância que o cristianismo e outras tradições espirituais dão à reconciliação.

Somos seres que desejam mundos plenamente harmoniosos, soluções perfeitas, infinitas. Quem não reconhece a impossibilidade de construirmos o infinito com passos finitos, humanos, acaba por deixar de amar seres humanos como eles são, de defender os direitos humanos de seres humanos com seus defeitos incorrigíveis; de lutar por um mundo que continua "defeituoso”, mas melhor.

Nessa nossa luta, precisamos lembrar o que dizia José Comblin: "A novidade do cristianismo não é o desejo do infinito, é o amor das coisas finitas, o amor das coisas que passam. (...) a fuga para o eterno e o absoluto é um truque da consciência para esconder uma fraqueza. (...) Pois, para um homem é um desafio ter que enfrentar permanentemente a fragilidade de sua condição e a incerteza do que é e pode”.

Direitos Humanos e socialismo: que mundo? que ser humano? (V Parte)

Direitos Humanos e socialismo: que mundo? que ser humano? (V Parte)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No artigo anterior, eu defendi a ideia de que devemos elaborar projetos de uma sociedade alternativa a partir da realidade que temos hoje, em uma tensão entre o que imaginamos como utopia e a realidade atual. E de que não devemos cair na "tentação” de desenharmos a nova sociedade somente a partir de nossos desejos ou crenças, como se tivéssemos à nossa frente um papel em branco. Com isso, concluí dizendo que devemos enfrentar uma contradição fundamental na nossa luta: o fato de que não há como organizarmos o sistema econômico em escala mundial sem os mecanismos de mercado e a constatação de que o mercado tem a tendência interna de acumulação de riqueza em mãos de poucos, de excluir os pobres e de colocar em ameaça o meio ambiente.

Neste artigo, quero propor uma reflexão sobre um outro tipo de contradição que devemos levar a sério: a contradição humana.

Muitas das propostas de uma nova sociedade– do tipo uma baseada na solidariedade, sem relações de concorrência, na igualdade, na harmonia entre seres humanos e entre humanos e a natureza –pressupõe uma noção de ser humano muito otimista. Parece que após a "libertação” ou "revolução”, na nova sociedade as pessoas deixariam de ser contraditórias: não teriam dentro de si nenhum sentimento de concorrência ou inveja, estaria isento de egoísmo, rivalidade e o desejo de possuir o que é dos outros, de domínio sobre outros e sobre a objetos do meio ambiente.

A descrição do "novo mundo” é tão atraente e fabuloso que nos encantamos com ela e passamos acreditar que é possível, pois é desejável. Contudo, nem tudo o que é desejável é possível. O ser humano necessário para que uma sociedade funcione assim parece-me muito irreal, pouco humano, demasiadamente angelical. O pressuposto antropológico subjacente ao desenho dessa nova sociedade parece cometer o mesmo equívoco de muitas antropologias do mundo moderno: o de que o ser humano é, por sua essência, bom, puro, plenamente solidário e harmonioso. E é a sociedade que o corrompe. No nosso caso, a sociedade capitalista que o corromperia e o fim do capitalismo traria de volta esse ser humano "puro”.

Oposto a essa visão extremamente otimista, o neoliberalismo pressupõe uma noção totalmente negativa do ser humano: um ser totalmente egoísta, incapaz de solidariedade genuína, movido somente por interesses econômicos. A partir dessa noção, o neoliberalismo propõe que as metas sociais e o bem comum sejam tiradas da discussão política e deixada somente para os mecanismos inconscientes do mercado, o famoso "mão invisível” do mercado. Não é verdade que os neoliberais não se preocupam com solidariedade ou bem comum. Eles se preocupam sim, mas só não acreditam que o ser humano possa realizar isso por causa do seu egoísmo fundamental. Por isso, defendem que todas as questões ligadas ao bem comum sejam deixadas na mão do mercado, com sua eficiência que nasce da concorrência. Para os neoliberais, o ser humano é egoísta, mas o mercado transforma esse egoísmo em bem comum. O mercado salva!

Devemos superar esses dois extremos, dois equívocos antropológicos muito presentes no nossa tempo. O ser humano não é plenamente solidário, nem completamente egoísta. Somos seres contraditórios, com egoísmo enraizado em nós, mas com potencial de solidariedade; movidos por inveja, mas também por gratuidade; desejosos do bem comum, mas também movido por interesses próprios; seres que se realizam através de ações e trabalhos, mas que também é regido pela lei do menor esforço. Reconhecer e respeitar essa condição humana é também uma forma de defesa dos direitos humanos na luta por uma nova sociedade.

Lutar por ou exigir uma nova sociedade que pressupõe que todos os seres humanos sejam heróis ou anjos é negar a condição humana. Por isso, fadado ao fracasso, porque desumano, irreal. A construção de nova sociedade mais humana e justa só será efetiva se levarmos em consideração a realidade humana como ela é, naquilo que tem de mal e naquilo que tem de bom. É com o ser humano "real”, não o idealizado, e a partir das atuais condições da economia de mercado global é que poderemos construir uma outra sociedade mais justa e humana.

Direitos Humanos e socialismo: sonhos e o mercado (IV parte)

Direitos Humanos e socialismo: sonhos e o mercado (IV parte)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No artigo anterior, defendi a tese de que o projeto de uma sociedade pós-capitalista não deve ser pensado em termos de estatização de toda economia –como foi o modelo soviético–, mas deve ser um "sistema social que coloca no seu centro os direitos sociais de todos os indivíduos. Por isso, um sistema que se reconhece relativo e subordinando à realização dos direitos humanos, um sistema que está em permanente processo de revisão, crítica e reformulação”. Assim, o "socialismo” não seria mais identificado a um modelo institucional de organização do Estado e da economia –como foi por ex, o da estatização completa no modelo soviético–, mas sim com um projeto de sociedade fundando em uma tensão entre o critério último da busca da realização de direitos sociais e humanos de todos os indivíduos e o "desenho” concreto de sociedade sem uma definição a priori.

É claro que essa ideia geral, por mais importante que seja, não é suficiente para guiar lutas sociais e políticas concretas. Pois, sem a visão de um "modelo de sociedade”, não há como pensar a direção e os passos da caminhada. E é essa mesma visão que possibilita dar maior concretude a horizonte de esperança que alimenta as comunidades e grupos em luta.

De um modo bem simplificado, podemos dizer que há duas maneiras fundamentais de se pensar ou criar esse projeto de sociedade alternativa. A primeira é a de "desenhar” esse projeto a partir de alguns valores, crenças e ideias sobre o que seria o ideal. Por ex, há grupos que pregam que estamos indo, ou que devemos ir, em direção a uma grande harmonia cósmica entre seres humanos e a natureza/cosmos; outros que defendem uma sociedade sem exploração econômica, por isso, sem propriedade privada e mercado.

A partir desse projeto, olham à realidade para criticar –tanto a situação quanto aos grupos que estão lutando– e propor caminhos de superação da situação. Mas, como o "desenho” do projeto é muito genérico, abstrato, fica muito difícil saber qual o caminho concreto construir. E quando perguntados sobre a viabilidade desses projetos históricos grandiosos, as respostas costumam ser evasivas ou se introduz noções "estranhas” à política como: "a histórica caminha para...” ou "a evolução está nos conduzindo o cosmos e a humanidade à plenitude...”. Noções essas (o espírito que move a história, evolução cósmica, etc.) que parecem substituir ou são usadas como sinônimos da ideia teológica de que Deus conduz a história ao destino pré-estabelecido por ele.

Esse tipo de argumentação seduz porque, com a noção de que há uma força sobre-humana nos conduzindo à plenitude e superação de todas as injustiças, cria esperança no futuro e compensa em parte a sensação de impotência diante da dominação capitalista global. O problema é que, se essa força conduz necessariamente a história e o cosmos a um destino, as nossas ações são desnecessárias. Pior, as injustiças do passado e do presente também foram partes dessa condução, portanto, não eram de fato injustiças.

Além disso, esses discursos grandiosos não nos dão pistas de ação, a não ser pregar essa nova consciência, e nos levam muitas vezes a criticar e opor a ações concretas possíveis que estão sendo feitas porque essas não levariam a essa plenitude.

Outro modo de pensar a sociedade alternativa é a partir das contradições da realidade em que vivemos. Vivemos em uma economia capitalista globalizada, sob a hegemonia do capital financeiro e dos grandes conglomerados, que é apresentado pelos ideólogos do sistema como não havendo alternativa a ela e que todas alternativas propostas não passariam de sonhos irrealizáveis. Além disso, bilhões de pessoas mais pobres desejam entrar no sistema, realizar o sonho de consumo, e não lutar por outra sociedade.

Diante dessa realidade, não basta "desenharmos” uma nova sociedade como se tivéssemos um papel branco à nossa frente. Precisamos de ima imaginação utópica de um mundo mais humano e justo que nos possibilita ver as contradições e injustiças desse mundo, mas o novo desenho precisa ser feito a partir do mundo atual. Deduzir diretamente dessa imaginação um projeto de sociedade pode nos levar ao idealismo romântico e/ou a equívocos estratégicos terríveis.

A economia está globalizada, formando uma divisão social de trabalho em escala mundial. E não será possível modificar isso num futuro próximo, a não ser que passemos por uma catástrofe em escala mundial. O tamanho da escala e de complexidade da economia global exige, para seu funcionamento, relações de troca, isto é, relações mercantis e mercado em escala global. O que significa dizer que não é possível defender os direitos humanos, começando pelo direito de viver, de todas as pessoas propondo uma nova economia baseada somente em pequenas empresas ou uma sem mercado.

Ao mesmo tempo em que reconhecemos a necessidade hoje do mercado global, também sabemos que esse mercado tende à concentração de riqueza, exclusão dos mais pobres e deterioração do meio ambiente. O caminho da solução não consiste em "fugir” para imaginação de um mundo sem essa contradição, mas em enfrentá-la.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Direitos Humanos e socialismo: contradição necessária e insuperável (III Parte)

Direitos Humanos e socialismo: contradição necessária e insuperável (III Parte)

Jung Mo Sung: Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No final do artigo anterior, fiz duas afirmações interligadas que quero retomar aqui: a) a nossa luta por uma nova sociedade não deve ter como objetivo último um novo tipo de sistema econômico-político – por ex, sistema socialista de planejamento centralizado pelo Estado –, pois a dignidade e direitos humanos são anteriores a qualquer sistema social; b) não há possibilidade de realização dos direitos humanos sem sistemas e instituições sociais.

Com a derrocada do bloco socialista na década de 1990 e às críticas à razão moderna, hoje são poucos, entre os que lutam por um "outro mundo possível”, aqueles que defendem o sistema socialista dominante no século XX, que quase absolutizava o Estado dirigido pelo Partido Comunista. Como reação a esse modelo, muitos tem ido à direção oposta e proposto uma nova sociedade que parece não ter instituições. Em nome da defesa dos direitos humanos (e alguns agregando os direitos da natureza), que são anteriores a qualquer sistema social, imaginam uma sociedade (quase) sem nenhum mecanismo institucional que possam reduzir ou reprimir esses direitos. Por ex, uma sociedade sem mercado –que sempre exclui quem não é consumidor–, ou então um Estado sem instituições ambíguas –como democracia que implica em conflitos e disputas pelo poder, portanto em alianças e negociações– ou mecanismos de repressão legal.

Seria ideal que pudéssemos construir uma sociedade em que vícios humanos fossem extintos e prevalecesse harmonia entre indivíduos, grupos sociais e nações. O problema é que a realização concreta dos direitos humanos, como comer e morar dignamente ou liberdade de expressar suas ideias, pressupõe a produção de bens materiais e simbólicos em quantidade suficiente para toda a população. E essa produção exige sistemas de trabalhos (que inclui meios de produção, matéria prima, energia, tecnologia, mão de obra...), que pressupõe instituições e regras, que são sempre imposições sobre a vontade individual.

A dignidade fundamental de todas as pessoas, independente do seu lugar em qualquer e todo tipo de sistema, só pode ser garantida e seus direitos realizados através de mecanismos sociais e institucionais. Ao mesmo tempo, a lógica de toda instituição e de sistemas sociais é a de reduzir pessoas a um elemento de seu próprio funcionamento. Isto é, há uma contradição insuperável entre a afirmação da dignidade humana como anterior a todo sistema e a lógica de funcionamento dos sistemas. Ao mesmo tempo, não podemos realizar essa dignidade e direitos que dele decorrem sem esses mecanismos sociais e institucionais. Esse é o caráter dialético insuperável da vida humana.

Há pessoas que, de forma idealista (no sentido filosófico), anunciam a possibilidade de fim dessa contradição. Mas, quando pedidos para descrever como seria esse novo mundo e novos seres humanos, não podem nada mais que responder apenas com linguagens simbólicas (místicas ou poéticas) que não permitem deduzir nenhum caminho estratégico concreto.

Imaginações simbólicas são fundamentais para vislumbrar novidades na história, mas, se ficarmos somente nesse nível, não logramos pensar e praticas ações políticas e sociais concretas. Só ficamos em "apelos morais e espirituais”.

Há outros que priorizam o polo da instituição e fazem do Estado, Partido ou líder que encarnaria o processo revolucionário, o critério último. Com isso, não admitem nenhuma crítica a eles, mesmo em nome da vida dos mais pobres. Toda e qualquer crítica é vista como um tipo de traição.

Penso que o caminho mais viável (ou único) para retomar o espírito que moveu a luta pelo socialismo nos século XIX e XX é o de assumir a defesa da dignidade e dos direitos humanos de todas as pessoas como critério último e buscar construir mecanismos, instituições e sistemas sociais que possam garantir a concretização desses direitos. Socialismo entendido, não mais como estatização, mas como sistema social que coloca no seu centro os direitos sociais de todos os indivíduos. Por isso, um sistema que se reconhece relativo e subordinando à realização dos direitos humanos, um sistema que está em permanente processo de revisão, crítica e reformulação.

Direitos Humanos e o socialismo do século XXI (II parte)

Direitos Humanos e o socialismo do século XXI (II parte)

Jung Mo Sung: Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
É da própria lógica de funcionamento de sistemas ou instituições sociais tratar o indivíduo humano como uma peça da sua engrenagem e, desta forma, valorizá-lo na medida em que cumpre com as exigências do próprio sistema. Quanto mais totalitário o sistema, mais o ser humano é reduzido à condição de elemento do sistema e nada mais. Em uma sociedade capitalista neoliberal, como afirmei no artigo anterior, "os direitos humanos foram substituídos por ‘direito do consumidor’, porque, no neoliberalismo, quem não é consumidor não é humano, portanto não possui direitos fundamentais”.

É claro que legalmente falando, mesmo um indivíduo totalmente excluído do mercado, um miserável, não deixar de ser considerado humano, mas na vida cotidiana real e nas dinâmicas sociais e econômicas ele não tem seus direitos humanos fundamentais reconhecidos e respeitados. O mercado, na cultura capitalista, passou a ser considerado a fonte da humanidade e, portanto, fonte dos direitos fundamentais.

Essa experiência cotidiana está tão internalizada na nossa cultura que, quando alguém se sente "menos gente”,deprimido ou "impuro”, uma das soluções mais procuradas é ira ao shopping fazer compras. É no contato direto com o que há de mais esplendoroso do mercado, as vitrines dos shoppings com objetos e marcas glamorosos, que o indivíduo se sente recuperando a humanidade perdida. No passado, as pessoas em situação semelhante iam a igrejas ou a lugares sagrados rezar ou realizar algum ritual porque, nessa cultura, a religião, o sistema religioso, era vista como a fonte da humanidade. Por isso, quem era ateu ou de outra religião que não a dominante era visto como um indivíduo carecendo de humanidade plena.

A luta pelos direitos humanos no século XX não foram somente lutas "políticas” contra Estado totalitário ou ditatorial (seja nos países capitalistas ou comunistas), eram e são fundamentalmente a afirmação da dignidade fundamental do ser humano anterior a qualquer instituição ou sistema social (sistema de mercado, Estado, Igreja,...). Portando, os direitos fundamentais de todo ser humano a vida digna e, por isso, a direitos como a moradia, saúde, educação, ao trabalho remunerado, liberdade de expressão, de ir e vir são anteriores e independentes do lugar que a pessoa ocupa no sistema social dominante.

Não é pertença a uma religião ou igreja que dá dignidade ou valor a uma pessoa. Em termos de sistema religioso, a afirmação dos direitos humanos se fundamenta no princípio de que Deus não faz distinção entre pessoas, não importando se é "judeu ou gentio” (sistema político-religioso), homem ou mulher (sistema de parentesco e de gênero), livre ou escravo (sistema de propriedade/economia) e outras distinções e hierarquias sociais que temos. Em uma linguagem teológica cristã, poderíamos dizer que os direitos humanos se fundam na graça de Deus (Deus não impõe nenhuma condição humana, social ou religiosa para amar a todos).

Assim também, não é pertença ao sistema de mercado e a capacidade de consumo que dá fundamento aos direitos humanos na sociedade capitalista; nem ser cidadão legalmente documentado no mundo globalizado que se fecha aos fluxos imigratórios de trabalhadores buscando sobrevivência; ou então ser leal e obediente ao Estado socialista em países governados por partidos comunistas.

A luta por um "outro mundo possível” não pode ser por um tipo de sistema político-econômico alternativo definido como absoluto ou como critério último para as decisões concretas. Pois, se o sistema ou instituição é tomado como critério último, a dignidade do ser humano fica condicionada a pertença e à lógica dessa instituição ou sistema e se nega a anterioridade da dignidade e dos direitos humanos em relação a todo e qualquer sistema social. Não há possibilidade de realização dos direitos humanos sem sistemas e instituições sociais, mas devemos garantir que esses direitos sejam vistos como anteriores a sistemas. Se não, cairemos em totalitarismo, seja do sistema de mercado total, seja do Estado socialista totalitário ou de qualquer outro sistema político-social ainda a inventar.

domingo, 12 de agosto de 2012

O que cobrar ao capitalismo neoliberal em crise

O que cobrar ao capitalismo neoliberal em crise
Leonardo Boff *


A crise do neoliberalismo atingiu o coração dos países centrais que se arrogavam o direito de conduzir não só os processos econômico-financeiros, mas o próprio curso da história humana. A crise é da ideologia política do Estado mínimo e das privatizações dos bens públicos; mas, também, do modo de produção capitalista, extremamente exacerbado pela concentração de poder como nunca se viu antes na história. Estimamos que esta crise possui caráter sistêmico e terminal.

Sempre o gênio do capitalismo encontrava saídas para seu propósito de acumulação ilimitada. Para isso usava todos os meios, inclusive a guerra. Ganhava destruindo e ganhava reconstruindo. A crise de 1929 se resolveu não pela via da economia, mas pela via da Segunda Guerra Mundial. Esse recurso agora parece impraticável, pois as guerras são tão destrutivas que poderiam exterminar a vida humana e grande parte da biosfera. E não estamos seguros de que em sua insanidade, o capitalismo não use até este meio.

Desta vez surgem dois limites intransponíveis, o que justifica dizer que o capitalismo está concluindo seu papel histórico. O primeiro é o mundo cheio, quer dizer, o capitalismo ocupou todos os espaços para sua expansão em nível planetário. O outro, verdadeiramente intransponível, é o limite do planeta Terra. Seus bens e serviços são limitados e muitos não renováveis. Na última geração queimamos mais recursos energéticos do que havíamos feito no conjunto das gerações anteriores, nos atesta o analista cultural italiano Luigi Soja. Que faremos quando estes atingirem um ponto crítico ou simplesmente se esgotarem? A escassez de água potável pode colocar a Humanidade face a uma dizimação de milhões de vidas.

Os controles e as regulações propostas até agora foram simplesmente ignoradas. A Comissão das Nações Unidas sobre a Crise Financeira e Monetária Internacional, cujo coordenador era o prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz (chamada de Comissão Stiglitz) empreendeu grande esforço, para, a partir de janeiro de 2009, apresentar reformas intrassistêmicas de cunho keneysiano. Aí se propunha uma reforma dos organismos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial) e da Organização Mundial do Comércio (OMC). Previa-se a criação de um Conselho de Coordenação Econômica Global no mesmo nível que o Conselho de Segurança, a constituição de um sistema de reservas globais, para contrabalançar a hegemonia do dólar como moeda de referência, a instituição de uma fiscalização internacional, a abolição os paraísos fiscais e do segredo bancário e, por fim, uma reforma das agências de certificação. Nada foi aceito. Apenas a ONU acolheu a constituição permanente de um Grupo de Experts de Prevenção das Crises, que ninguém lhe dá importância porque o que realmente conta são as bolsas e a especulação financeira.

Esta constatação decepcionante nos convence de que a lógica deste sistema hegemônico pode tornar o planeta não mais amigável para nós, nos levar a catástrofes sócio-ecológicas tão graves a ponto de ameaçar nossa civilização e a espécie humana. O certo é que este tipo de capitalismo que na Rio+20 se revestiu de verde com o intuito de colocar preço em todos os bens e serviços naturais e comuns da Humanidade, não tem condições a médio e a longo prazo de assegurar sua hegemonia. Outra forma de habitar o planeta Terra e de utilização de seus bens e serviços deverá surgir.

O grande desafio é como processar a transição rumo a um mundo pós-capitalista liberal. Este terá como centro o Bem Comum da Humanidade e da Terra e será um sistema de sustentação de toda vida que expresse nova relação de pertença e de sinergia com a natureza e com a Terra.

Produzir é preciso, mas respeitando o alcance e os limites de cada ecossistema, não meramente para acumular; mas, para atender, de forma suficiente e decente, as demandas humanas. Importa ainda cuidar de todas as formas de vida e buscar o equilíbrio social, sem deixar de pensar nas futuras gerações que têm direito à uma Terra preservada e habitável.

Não cabe neste espaço aventar alternativas em curso. Ater-nos-emos ao que é possível fazer intrassistemicamente, já que não há como sair dele proximamente.

Assistimos ao fato de que a América Latina e o Brasil, na divisão internacional do trabalho, são condenados a exportar minérios e commodities, bens naturais como alimentos, grãos e carnes. Para fazer frente a este tipo de imposição, deveríamos seguir passos já sugeridos por vários analistas especialmente por um grande amigo do Brasil François Houtart em seus escritos e no seu recente livro com outros colaboradores: "Un paradigma poscapitalista: el Bien Común de la Humanidad” (Panamá 2012).

Em primeiro lugar, dentro do sistema, lutar por normas ecológicas e regulações internacionais que cuidem o mais possível dos bens e serviços naturais importados de nossos países; que tratem de sua utilização de forma socialmente responsável e ecologicamente correta. A soja é para alimentar primeiramente gente e só depois animais.

Em segundo lugar, cuidar de nossa autonomia, recusando a imposição do neocolonialismo por parte dos países centrais que nos mantém, com outrora, periféricos, subalternos, agregados e meros supridores do que lhes falta em bens naturais. Antes, devemos cuidar de incorporar tecnologias que deem valor agregado aos nossos produtos, criemos inovações tecnológicas e orientemos a economia, primeiro, para o mercado interno e em seguida para o externo;

Em terceiro lugar, exigir dos países importadores que poluam o menos possível em seus ambientes e que contribuam financeiramente para o cuidado e regeneração ecológica dos ecossistemas de onde importam os bens naturais especialmente, no caso do Brasil, da Amazônia e do Cerrado.


Trata-se de reformas e não ainda de revoluções. Mas apontam para o novo e ajudam a criar as bases para propor um outro paradigma que não seja o prolongamento do atual, perverso e decadente.


* Leonardo Boff é teólogo e filósofo. Doutor Honoris Causa em política pela Universidade de Turim