"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

terça-feira, 1 de maio de 2012

O autoritarismo em Marx


O filósofo e revolucionário alemão Karl Marx, afirmava que “a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado”. Mas ditadura do proletariado não era para Marx, um regime totalitario e burocratico de partido único, como o que existiu na antiga URSS e no Leste Europeu. Para Marx, ditadura do proletariado era uma ditadura de classe, ou seja, o Estado operário existente em uma sociedade pós-capitalista, onde o proletariado havia se tornado a classe dominante. Essa ditadura deveria se apresentar sob a forma de governo representativo, como ocorre no capitalismo(que segundo Marx é uma ditadura da burguesia), garantindo a mais ampla liberdade para os trabalhadores. O objetivo era garantir a expropriação dos capitalistas e o processo de transformação revolucionária da propriedade privada sobre os meios de produção em propriedade social. Engels é muito claro a esse respeito: "somos obrigados a nos servir dele [o Estado] na luta, na revolução, para reprimir pela força os adversários". (Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março de 1875).

Marx e Engels nunca defenderam regime de partido único. Entretanto é obvio que os fundadores do socialismo científico não eram democratas e sim revolucionários, que defendiam a violência como instrumento de ação política. Mas é preciso deixar claro que nem de longe defenderam algum tipo de regime totalitario.

O historiador Francisco Buey, em "Marx(sem ismos)" reconhece o autoritarismo de Marx, embora sublinhe que por autoritarismo não se deve entender totalitarismo. Buey reconhece em Marx o traço autoritário, presente no aproveitamento do modelo jacobino francês no encaminhamento político da luta social. Relembra que, embora Marx tenha admitido a possibilidade de conquista pacífica do poder pelo proletariado (justamente nos países mais avançados em emancipação política, via voto), não cabe falar em um Marx democrata, mas em um Marx revolucionário e, portanto, capaz de defender o “terrorismo revolucionário”, filho que foi de um século em que a guerra e as “revoluções” compunham a regularidade do cotidiano. Mas em hipótese alguma defendia regime de partido único, até porque não defendia um partido exclusivo dos comunistas, pois afirmava que os comunistas eram o setor mais combativo e organizado do Partido Operário.

Atento sempre ao “leitor contemporâneo”, Buey salienta a concepção problemática que Marx tinha de democracia, enquanto coordenada relativa à forma política. Diante de certos juízos de Marx, como aquele em que ele defende a violência como a célebre parteira de “toda velha sociedade que está grávida de uma sociedade nova”, Buey concorda que “hoje em dia, quando alguém chega nesse ponto, fecha o livro”. Buey recupera, no entanto, que o próprio Marx reconhece a existência de diferentes formas de “gravidez” e que, para algumas delas, admite outra parteira, a via “pacífica”.

O autoritarismo de Marx é totalmente compreendido a luz da história, uma vez que a democracia burguesa no século XIX também era autoritaria, pois impedia a livre organização dos trabalhadores, até mesmo excluindo-os do processo político através do voto censitário, onde apenas quem tinha propriedade e pagava impostos podia votar e ser eleito. A questão social era considerada caso de policia, com as greves e manifestações operárias sendo brutalmente reprimidas. A jornada de trabalho era de até 16 horas diarias, não havia direito a férias e as condições de trabalho eram desumanas, com salários que garantiam apenas o mínimo necessário para sobreviver. Não havia previdência social e as mulheres ganhavam muito menos que os homens, apesar de trabalharem nas mesmas condições.

Mas se Marx e Engels não defendiam regime de partido único, como os países socialistas adotaram esse modelo? O revolucionário russo Vladimir Lenin, fundador e lider do Partido Bolchevique, reinterpretou a ditadura do proletariado como ditadura do partido do proletariado, o que originou o regime de partido único após a vitória da Revolução Russa de Outubro de 1917, que serviu de modelo para todas as demais revoluções socialistas ocorridas no século passado. E essa ditadura acabou resultando no totalitarismo stalinista.

Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin. O regime bolchevique foi pré-totalitario, pois preparou o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista")

O que fracassou no Leste Europeu e na antiga URSS foi a releitura do marxismo realizada por Lenin e seus "camaradas" do Partido Bolchevique, que originou o regime totalitario e burocratico de partido único, que alcançaria o ápice do terror e da barbárie durante a época do stalinismo. Portanto não basta ser anti-stalinista, é preciso se opor ao leninismo. A esquerda precisa abandonar a herança autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado. É preciso seguir o exemplo do historiador marxista Jacob Gorender, que em "Marxismo sem utopia" faz uma dura critica ao bolchevismo.

"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado."

(Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43) 


Resgatar o melhor do marxismo não significa fazer uma leitura dogmatica do seu pensamento. O capitalismo se democratizou em virtude da luta heróica dos movimentos operários e populares, deixando de ser um "mero comitê executivo" da burguesia. E mais, o filósofo e revolucionário italiano Antonio Gramsci enriqueceu o pensamento marxista ao abordar a questão do consenso, o que permite o abandono das posições autoritárias de Marx, que são anacrônicas diante da realidade da luta de classes no século XXI. A partir de Gramsci, se tem a certeza que numa situação de capitalismo avançado e de sociedade democratizada, o caminho para o socialismo deverá se dar de maneira progressiva e pacífica, através da luta pela hegemonia do proletariado.

O cientista político Carlos Nelson Coutinho, grande nome do marxismo em nosso país, reconhece esse fato em entrevista publicada na revista Teoria e Debate nº 51, quando respondeu a seguinte pergunta: "Há algo anacrônico na perspectiva expressa no Manifesto Comunista?"  


Carlos Nelson Coutinho: "Há duas coisas: as teorias do Estado e da revolução. A teoria do Estado como simplesmente o comitê executivo da burguesia, que se vale apenas da opressão como recurso de poder; e a idéia da revolução como uma guerra civil oculta que explode violentamente. Em 1848, a maior parte da Europa ainda estava sob o absolutismo; e, onde havia liberalismo, havia voto censitário, ou seja, os parlamentos eram eleitos apenas pelos proprietários. Era então correto dizer que o Estado não passava de um comitê executivo da burguesia. Mas, já na segunda parte do século XIX, começou a se dar uma socialização da política: o sufrágio tornou-se cada vez mais universal, foram criados partidos políticos de massa, os sindicatos puderam se organizar legalmente. No prefácio que escreveu em 1895 para a reedição de ' Luta de Classes na França' de Marx, Engels – no ano de sua morte – já revela ter se dado conta desta socialização da política e, portanto, da necessidade de rever os conceitos que ele e Marx haviam formulado por volta de 1848.

Mas foi Gramsci, em seus 'Cadernos do Cárcere', quem efetivamente elevou a conceito esta nova constelação histórica. Gramsci chama de "sociedade civil" as organizações que resultam desta socialização da política: sindicatos, partidos, associações em geral etc. E, em função disso, reelaborou a teoria marxista do Estado. Gramsci criou uma nova teoria marxista do Estado. Ela é marxista porque continua dizendo que o Estado é, em última instância, ainda que não mais em primeira, um Estado de classe. Mas o modo pelo qual ele hoje é um Estado de classe é diferente. O Estado se tornou um Estado ampliado: é obrigado a levar em conta, enquanto momento da constituição das relações de poder na sociedade, os organismos da sociedade civil. A forma pela qual o Estado opera hoje não é mais só por meio da violência, mas também da persuasão e do consenso."

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