"É preciso repensar a definição do homem. A visão clássica era idílica
demais e já não serve, mas a definição anti-humanista do homem serve ainda
menos"
Aos 75 anos, o filósofo Ruy Fausto lamenta não ter tempo para
realizar seus projetos. O autor de "Marx: Lógica e Política" (Editora 34) e
"Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (Paz e Terra) luta por uma refundação
do pensamento de esquerda. O primeiro compromisso da esquerda deve ser com a
democracia e o segundo, com o combate à corrupção. Só depois vem a crítica ao
capitalismo, defende. Neste tempo em que tanto o comunismo quanto o
neoliberalismo entraram em crise, o tempo é de balanço.
Para promover
suas ideias de uma nova esquerda, Ruy Fausto prepara o lançamento de uma revista
eletrônica. O nome será "Fevereiro", em homenagem às revoluções de 1848, à
primeira revolução russa de 1917 e ao levante de Kronstadt (1921), quando
marinheiros e operários foram massacrados pelos bolcheviques. "É claro que é uma
provocação", afirma. "Já que tem tanta Outubro por aí, esta é
'Fevereiro'."
Nascido em São Paulo e irmão do historiador Boris Fausto, o
filósofo foi militante trotskista na juventude, antes de se exilar em Paris, em
1968. Na França, terminou sua tese e lecionou na Universidade Paris 8. Professor
emérito da USP, Fausto se entusiasma com o crescimento dos partidos verdes na
Europa e prevê catástrofes ecológicas que obrigarão a humanidade a repensar o
capitalismo. "Estou na posição cômoda de quem não vai viver para ver isso, mas
vocês, jovens, terão de enfrentar o problema."
Ex-petista desde o
escândalo do mensalão, Fausto avalia que, em matéria econômica, a era Lula
manteve-se na ortodoxia, mas ao mesmo tempo o presidente da República tomou
medidas favoráveis aos mais pobres. "Seu mérito é jamais ter ameaçado a
democracia", comenta. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em
Paris.
O senhor rompeu como PT logo no começo da crise do
mensalão. Hoje, que a "era Lula" está acabando, como avalia o período, do ponto
de vista da história?
Ruy Fausto: É importante que se tenha
eleito para a Presidência um líder sindical com a história de Lula. Ele fez um
governo curioso: em matéria econômica manteve-se na ortodoxia, mas ao mesmo
tempo tomou medidas favoráveis aos mais pobres. Seu mérito é jamais ter ameaçado
a democracia. É nessa base que se assenta seu prestígio no exterior. Acho que se
fizeram coisas positivas no governo Lula. Creio que houve avanços em matéria de
educação, e o Bolsa Família, mesmo se é uma medida emergencial, dá algum respiro
à população mais pobre.
A economia avança, mas os problemas continuam
sendo enormes: violência, caos urbano, desigualdade. Importante é que se impõe a
ideia de que devemos resolver o problema do conjunto da população. Sob o governo
anterior, dizia-se que "a situação econômica" permitia resolver o problema de
uma parte da camada mais pobre, mas as outras... Isso acabou. A exigência de
justiça social, pelo menos como ideia, se impõe. Mas o PT acabou mergulhando no
pior da política brasileira. E houve até o risco de ter um José Dirceu na
Presidência.
A decepção é com o PT?
Fausto:
Ainda penso que o PT tem interesse. Lá existe gente boa e também, digamos,
algumas figuras razoáveis, com gente muito, muito ruim. Aprecio o Fernando
Haddad [ministro da Educação], que faz um trabalho sério, nos limites do
possível. E se um dia conseguíssemos lançar alguém como ele como candidato à
Presidência, a partir de um movimento de base não comprometido demais com o PT?
Não se subestimem essas jogadas históricas: seja qual for o futuro de seu
governo, o caso Obama mostra como o improvável pode se
efetuar.
Afinal, qual é o balanço dessa esquerda no poder?
Fausto: No início, a prudência de tipo ortodoxo era necessária,
mas eles poderiam ter avançado depois. E não me agrada a política externa. Não é
possível fazer o elogio do escândalo sangrento em que culminaram as eleições
iranianas. O governo Lula professa, apesar de tudo, um terceiro-mundismo
rançoso, como se vê por sua atitude em relação a Fidel Castro e Hugo Chávez. É
hora de acabar com isso, o que não significa, muito pelo contrário, deixar de
criticar o capitalismo. Já o problema da corrupção foi esvaziado com o argumento
banal da crítica do "moralismo". Numa certa esquerda, como a solução é o
comunismo triunfante, a corrupção aparece como epifenômeno do capitalismo. Mas
quando cai a ideia do comunismo, a luta contra a corrupção aparece como um
objetivo que, para usar a velha linguagem, se tornou estratégico. É tão
essencial quanto a democracia. E vamos cutucar o capitalismo, pensar em como
enfrentá-lo. É questão de invenção, o que é ótimo. Superar ideias antigas é, em
primeiro lugar, um projeto intelectual, mas também é
política.
Depois de 1989, a esquerda ficou abalada; depois de
2008, quem se abalou foi a direita. Há uma esquerda pronta para responder às
questões de hoje?
Fausto: A derrota de 1989 não foi da
esquerda, mas do chamado "comunismo". Para entender isso, é preciso refazer a
história do bolchevismo. O que caiu - embora tivesse mudado, em alguma medida -
era trabalho escravo, genocídio, despotismo. Outubro de 1917 foi algo muito
duvidoso. Em três meses, todos, até os operários, estavam contra os
bolcheviques. Por três anos, houve massacres, greves, revoltas, até que veio o
levante de Kronstadt. A explicação pelas "condições" não explica quase nada. Com
a queda do bolchevismo, a esquerda se livrou de uma hipoteca insustentável.
Fala-se da perda de "conquistas". Não houve conquistas; houve alguns avanços,
mas fragilizados pelo quadro totalitário e pagos ao preço de regressões
históricas enormes, que redundaram num déficit histórico global
imenso.
A esquerda está numa boa posição para dar as
respostas?
Fausto: As dificuldades são grandes, principalmente
em termos de meios. Mas os fins não são obscuros e utópicos como eram, digamos,
há 40 anos. A primeira coisa a saber é que um projeto de sociedade é preciso.
Antigamente, supunha-se que não era nem se devia formulá-lo, sob pena de
utopismo: a "história" se encarregava, e já teria se encarregado, disso. Hoje,
sabemos que a "história" não se encarrega de nada, em geral, e quando se
"encarrega" pode vir o pior. Em matéria de projetos, não há mil alternativas.
Sim aos direitos democráticos, ao Estado, ao direito e também à propriedade
privada. Resta o problema mais difícil: o capitalismo. É preciso distinguir -
Karl Marx [1818-1883] o fazia, mas de outro jeito - o capitalismo, de um lado, e
a existência de mercadoria e dinheiro, de outro. É muito problemático, como ser
e como dever ser, propor o fim da mercadoria e do dinheiro. Mas ao mesmo tempo é
duvidoso que o capitalismo, busca frenética do lucro, subsista
eternamente.
O que o senhor propõe concretamente?
Fausto: Queremos uma sociedade democrática, muito democrática.
Quanta escória antidemocrática subsiste nas sociedades ocidentais! Depois, uma
sociedade muito igualitária, mas não absolutamente igualitária. Terceiro, uma
sociedade em que, havendo mercadoria e dinheiro, o capital seja freado de algum
modo. Para isso, existem alguns meios: imposto de renda realmente diferenciado,
desenvolvimento de cooperativas, ação do Estado nos setores fundamentais. Além
do que se pode fazer no plano internacional. É preciso tirar da cabeça a ideia
nefasta de que um projeto político de esquerda, nos seus objetivos finais pelo
menos, vá fazer descer o céu sobre a Terra. Quem quer fazê-lo acaba descendo ao
inferno.
O Hegel [1770-1831] maduro tem razão, a seu modo, quando deixa
de pôr o absoluto na cidade. Também Platão, quando passa da República às Leis.
Quem quer o infinito, ou procura absolutos, que pesquise por outros lados que
não os da política: por exemplo, na arte ou no amor. Mas há ainda dois
problemas: um é o Terceiro Mundo, com sua carga de miséria e também, às vezes,
de fanatismo fundamentalista.
O outro são as questões ecológicas. Nisso,
vejo uma dupla ameaça: crônica, de certo modo, com o uso multiplicado das
energias fósseis; e aguda, com a possibilidade de uma catástrofe nuclear. Mas
como intervir no mundo atual? E aí aparecem outras questões: a emergência da
China, por exemplo. Pouca gente na esquerda e na direita se preocupa
suficientemente com o fato de que a possível futura maior economia do mundo seja
um país semitotalitário. Mas a primeira coisa para enfrentar esses desafios,
condição necessária ainda que insuficiente, é repensar os fundamentos da
política da esquerda.
Há um vazio no pensamento da esquerda?
Fausto: De certo modo. Mas não vejo aí motivo de desespero. O
pensamento universitário é, em geral, impotente para enfrentar esses desafios. E
é também impotente o pensamento daqueles que professam um revolucionarismo de
outro tempo, como se o século 20 fosse um parêntese a ser eliminado. Isso é
comum entre economistas, filósofos e cientistas políticos de extrema esquerda.
Eu os convidaria a abrir o livro do século 20 e não nas páginas em que se fala
do capitalismo (democrático ou autoritário), mas nas que falam do seu outro. Há
quase cem anos de literatura histórica e crítica a respeito. Quanto aos autores
que, num plano mais geral, poderiam nos servir como ponto de partida, citaria o
[Theodor] Adorno [1903-1969] da "Dialética Negativa", [Cornelius] Castoriadis
[1903-1997] certamente e também Claude Lefort.
Por onde passa a
renovação do pensamento de esquerda?
Fausto: Primeiro, por um
banho de história. É impossível fazer qualquer coisa enquanto a maioria
acreditar na versão leninista da história do século 20, um pouco menos ruim do
que a stalinista, mas hoje muito mais nefasta, já que na mitologia stalinista
quase ninguém mais acredita. A segunda coisa é a crítica do anti-humanismo
renascente, crítica que tem de ser feita fora dos quadros do humanismo. A
terceira é uma teoria crítica das formas políticas. A universidade, em ampla
medida, passa ao largo desse programa, principalmente no
Brasil.
O senhor critica o anti-humanismo dos filósofos Alain
Badiou e Slavoj Zizek. Mas o humanismo clássico foi apontado como responsável
pelas atrocidades do século XX. O que podemos contrapor ao anti-humanismo hoje?
Fausto: O primeiro problema é definir o humanismo: ele aparece
como recusa da violência e como filosofia dos direitos do homem. A partir de
Marx (não sou marxista), se pôde ter a ideia, que vem, em última instância, de
Hegel, de que o humanismo pode cair no seu contrário (num mundo de violência,
propor a não violência implica violência), mas que o anti-humanismo não é
solução. O humanismo fundamenta a ética (o que, apesar das aparências, tem suas
dificuldades); o anti-humanismo elimina todo fundamento, o que é ainda mais
problemático. Mas é preciso ir além. As dificuldades do esquema clássico são
duas. Primeiro, é preciso repensar as relações entre meios e fins à luz da
história contemporânea. Depois, é preciso repensar a definição do homem. A visão
clássica era idílica demais e já não serve, mas a definição anti-humanista do
homem serve ainda menos.
E quanto ao humanismo como dominação?
Fausto: Isso é fruto de uma identificação entre humanismo de um
lado, e visão prometeica-cartesiana de outro. Com isso, é fácil passar da
dominação da natureza à dominação do homem, daí o humanismo ser responsabilizado
pelos horrores do século 20. Essa tese, muito difundida, que às vezes põe no
banco dos réus até o kantismo, é falsa. Houve duas filosofias expressamente
humanistas na história: a de [Ludwig] Feuerbach [1804-1872] e a do jovem Marx (o
velho Marx é outra coisa). Neles, não há prometeísmo nem dominação da natureza,
mas um discurso humanista e também naturalista, muito marcado por Schiller.
Anuncia, à sua maneira, o discurso ecologista. Para além do problema histórico,
é fácil perceber que os totalitarismos são ao mesmo tempo prometeicos e
anti-humanistas. Infelizmente, não posso desenvolver muito, aqui, este
tema.
O iluminismo, então, não é humanista?
Fausto: Há muita coisa por trás da ideia de "iluminismo" que
precisa ser desconstruída. São ao menos três elementos: razão, progresso e
direitos do homem. Esses três elementos não funcionam (e não funcionaram,
historicamente) do mesmo modo.
Como podemos conceber o homem?
Fausto: É preciso pensá-lo como repositório de possíveis. Uma
"antropologia dialética", como diziam os frankfurtianos (tão mal utilizados
hoje, especialmente no Brasil). Nem o humanismo nem o anti-humanismo, nem mesmo
a recusa dos dois nos termos da dialética clássica, nos levam a um bom
resultado.
"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)
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