"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

domingo, 22 de abril de 2012

A Democracia Como Valor Universal

O cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor da UFRJ, foi um dos principais responsaveis pela divulgação da obra de Gramsci e de Lukács aqui no Brasil. Foi também um dos primeiros intelectuais marxistas em nosso país, a defender a necessidade de conciliar socialismo e democracia. Escreveu em 1979, o clássico "A Democracia Como Valor Universal".

"Em 1979 publiquei um artigo, 'A democracia como valor universal'. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como caminho para o socialismo. Nunca separei a democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.

Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título "A democratização como valor universal". O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxianado socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o "chamado socialismo real" não fez. E por isso, aliás, ele fracassou.

Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente de pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso nada tem a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente das massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.

Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política.(...) Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.

Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento de consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está a coerção devemos colocar cada vez mais o consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes."

(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)

Um comentário:

  1. "Enquanto existir capitalismo, o socialismo estará na agenda política. O capitalismo é uma formação social extremamente contraditória, que gera exclusão e desigualdade; e, nessa medida, nós, marxistas, sabemos que a alternativa ao capitalismo é o socialismo. Marx, no início dos anos 1870, dizia, referindo-se à fixação legal da jornada de trabalho, que esta tinha sido a primeira vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital, porque introduzira regulação social onde só havia mercado. A partir de um certo momento, portanto, revelaram-se possíveis importantes reformas no interior da ordem capitalista alterando a lógica do capital, ainda que não a derrotando plenamente. A social-democracia do início do século XX foi lúcida ao se dar conta de que era possível empreender reformas, e empenhou-se neste sentido. O conjunto dessas reformas configurou o Welfare State, a maior vitória da classe operária no quadro da ordem capitalista.

    Mas a social-democracia não foi coerente com sua própria proposta reformista. A lógica da cidadania, da luta pelas reformas deveria levar ao socialismo. Era inevitável que seu desenvolvimento se chocasse com a lógica do capital. Quando isso se colocou, a social-democracia preferiu gerir o capitalismo a aprofundar o processo de reforma. A social-democracia foi pouco reformista. É aqui que entra minha idéia (que de resto não é minha, é do André Gorz no final dos anos 60, quando ainda era marxista) do reformismo revolucionário. Devemos lutar por reformas que entrem em contradição com a lógica do capital e possam levar à sua superação. Isso tem a ver com a configuração das sociedades ocidentais, complexas, que nos impõem uma estratégia de guerra de posição, em que se ganha e se perde, há espaços que são ocupados e depois reconquistados pelo adversário de classe.

    Vivemos um período em que temos sofrido derrotas políticas importantes, mas isto não nos deve afastar da idéia de que a estratégia possível ainda é da guerra de posição e do reformismo revolucionário. A redução da jornada de trabalho foi uma vitória da economia política do trabalho, como dizia Marx; mas, num primeiro momento, revelou que não era incompatível com o domínio do capital. Mas, hoje, uma nova redução da jornada de trabalho é muito importante para entrarmos em contradição com a lógica do capital e, eventualmente, até o superarmos. Deu-se no interior do capitalismo um aumento da produtividade do trabalho de tal nível que hoje é possível reduzir drasticamente a jornada de trabalho mantendo-se os atuais níveis de produção.

    Mas isso não acontece; em vez de uma redução da jornada de trabalho, temos um aumento do desemprego porque há uma contradição entre as forças produtivas atuais e as relações de produção capitalistas. Esta contradição, uma velha lei formulada por Marx, que parecia meio abstrata, manifesta-se hoje no chamado desemprego estrutural. O único modo de resolver este problema em favor do interesse coletivo é a redução da jornada de trabalho, com o que todos poderiam trabalhar e trabalhar menos. Redução que, aliás, é para Marx o pressuposto do comunismo. A redução da jornada de trabalho nos liga a um processo de transformação global da sociedade, inclusive à fundação de um novo tipo de sociabilidade, baseado não mais na produtividade do trabalho visando ao lucro individual, mas no desenvolvimento da criatividade humana que poderá ser desenvolvida no tempo livre possibilitado pela redução da jornada de trabalho. Essa redução, assim, é claramente uma reforma revolucionária."

    (Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)

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